AS RAÍZES INDÍGENAS DO KA'ATIMBÓ-YUREMA
Em meados de 2006 iniciei minhas pesquisas sobre os cultos comumente chamados "afro-brasileiros". Percorrendo parte do litoral norte-rio-grandense - especialmente os municípios de Canguaretama, Natal e Ceará Mirim, tanto em suas áreas rurais quanto urbanas - pude constatar que, por trás do termo "afro-brasileiro", encontra-se, em realidade, uma série de manifestações espirituais híbridas, "sincréticas", nas quais, ao menos no Rio Grande do Norte, a presença indígena se faz marcante.
O que a Academia classifica "afro-brasileiro", o senso comum chama de: macumba, umbanda, catimbó, jurema, candomblé e Xangô. Para quem vê de fora, realmente, todos esses termos parecem significar uma mesma coisa, porém, há diferenças.
CANDOMBLÉ é uma religião de origem africana, trazida ao Brasil pelos escravos. Em linhas gerais, o Candomblé cultua os Orixás, sendo cada Orixá uma personificação de determinada Força da Natureza.
A UMBANDA é uma religião híbrida, nascida no sudeste brasileiro, na década de 1920. Na Umbanda encontramos elementos de credos cristião, judaico e islâmico, entrelaçados a caracteres afro-indígenas muito fortes e kardecismo (como disse, uma religião "híbrida"). Do sudeste a Umbanda expandiu-se pelo Brasil, absorvendo ou incorporando outros cultos populares como a Jurema e o Terecó.
O CATIMBÓ-JUREMA é um culto ancestral de matriz indígena, característico do nordeste brasileiro.
"Ka'atimbó", em língua de índio, significa "fumaça de mato" (uma referência aos métodos de cura e transmissão de forças utilizados por pajés e karaíbas - osmoterapia indígena na qual o paciente é defumado por vapor de determinadas plantas ou sobre o qual sopra-se fumaça da erva petym).
"Yurema" é uma das plantas sagradas dos índios do nordeste. Com a Jurema prepara-se uma bebida especial, venerada, também chamada "jurema", com a qual acredita-se fortalecer o corpo e a alma, além de possibilitar experiências enteógenas. Veremos que há uma polissemia em torno das palavras "catimbó" e "Jurema".
Os índios Tapuy'ya (Kariri e Tarairiu, por exemplo), em suas práticas espirituais, invocavam entidades, profetizavam, eram "incorporados" por espíritos de outros Tapuy'ya e - fazendo uso da Jurema - entravam em contato com os ancestrais e seus mundos sagrados.
A partir do século XVI, a presença européia e africana no litoral do nordeste brasileiro e o subsequente processo de colonização influiram no antigo cerimonial indígena, acrescentando-lhe elementos distintos. Atualmente, após séculos de colonização e perseguição cristã, em alguns terreiros encontramos uma Jurema permeada de elementos africanos; em outros, um culto com muitos caracteres católicos e kardecistas; e em outras casas de culto, uma Jurema ainda muito Tapuy'ya.
Canguaretama (município localizado no litoral sul do Rio Grande do Norte) é um exemplo de região na qual a Jurema permanece fortemente marcada por elementos indígenas. Entre 2009 e 2010, percorri o citado município a procura de centros e terreiros que lidassem com Tradições afro-ameríndias e minha surpresa foi grande ao constatar que não havia casa ativa que trabalhasse com Candomblé na região. Centro kardecista há um, cujo presidente é o senhor Edgar Aranha. Quanto às casas de Jurema, além das 27 cadastradas na Federação de Umbanda e Candomblé do Rio Grande do Norte, há tantas outras "irregulares" trabalhando na linha da Jurema, sejam ou não umbandistas.
Em linhas gerais, podemos dizer que em Canguaretama há quatro tipos de culto à Jurema: uma Jurema de mesa, na qual o Mestre ou Mestra que dirige a sessão é o "paié" conhecedor dos modos de invocar e despedir os Mestres espirituais, além de conhecer rezas para combater males específicos e o segredo medicinal de várias plantas. Sentado atrás de uma mesa muitas vezes bastante paramentada (além de vela e copo com água, podemos encontrar terços, imagens de santos católicos, rosas, livros, etc.), o Mestre canta suas toadas invocando índios, caboclos e espíritos encantados protetores das florestas e dos animais.
A Gira de Jurema - na Umbanda - é uma dança circular, marcada por cânticos de invocação aos Mestres e Mestras, caboclos e encantados, ritimada por tambores, triângulo e às vezes maracás. Na gira, os neófitos vão desenvolvendo sua mediunidade e, caso seja necessário, um Mestre pode manifestar-se para curar ou orientar algum devoto.
A Jurema de Chão em Canguaretama é chamada "Catimbó" e está relacionada a trabalhos mais pesados de desmancha de feitiços e vingança. Sozinho, nas matas, ou em seu terreiro - com ou sem presença de devotos - o Mestre abre sua mesa no chão antes de fazer seu Trabalho.
O Toré é uma outra forma de culto a Jurema, própria de comunidades indígenas ou de ambientes em que a presença cabocla é muito forte. Na aldeia do Katu - localizada entre os municípios de Canguaretama e Goianinha - os caboclos, em contato com os índios de Baía da Traição, reaprenderam o Toré. Os relatos mais antigos que encontrei na comunidade citam a existência, na primeira metade do século XX, de um "ritual Tapuy'ya", no qual os médiuns ficavam nus ou seminus, corriam pelas matas, comiam carne crua com mel e verduras e, após isso, realizavam a "dança Tapuy'ya". Hoje, entretanto, como ocorre no Katu, o Toré é uma dança circular na qual os caboclos cantam para os Mestres, Mestras e Encantados, sem a ocorrência de transe espiritual. Ninguém "recebe" espíritos - diferente dos "Torés de Caboclo" que ocorrem nos terreiros de Umbanda.
O que há de elementos indígenas no Catimbó-Jurema de Canguaretama? Podemos citar, por exemplo:
O transe espiritual e a "incorporação de espíritos" - que não é herança africana, como bem deixam claro as pesquisas de Olavo de Medeiros Filho sobre a "religião dos Tapuia". Os Mestres e Mestras "recebem" espíritos de índios guerreiros, pajés, caboclos e encantados. Dentre esses espiritos, encontramos a Florzinha da Mata, a mestra Andilina Caipora, Ka'axangá, o Pássaro Azulão, dentre outras divindades indígenas.
Geralmente chefes indígenas - como o Rei Kanindé, filho de Janduí e grade líder da Guerra dos Bárbaros, o Rei Tupinambá e Manoel de Almeida (irmão de Felipe Camarão), por exemplo - são citados constantemente nas sessões de vários terreiros. Referências a etnias indígenas também estão presentes nos cânticos: Tupinambá, Guarany, Tapuy'ya de Kanindé, etc.
O uso ritualístico da bebida Jurema. Em algumas casas, porém, "Jurema" tornou-se algo bastante subjetivo - um Lugar, uma Força ou Ciência citada pelos Mestres, não mais uma bebida sagrada ingerida durante as sessões.
A crença nas aldeias e cidades da Jurema, lugares sagrados, "mundos espirituais", de onde vêm os espíritos curandeiros.
O uso ritualístico da erva petym (na língua Tupi), Badzé (no dialeto Brobo) - o tabaco - e de uma série de outas plantas sagradas da flora local, com as quais os Mestres preparam suas "fumaças", defumadores, remédios e banhos especiais.
A cura através da sucção. Estando uma pessoa com alguma parte do corpo enferma, após soprar fumaça de petym sobre o membro doente, o Mestre trata de retirar o mal chupando a parte afetada. Se a causa da doença for feitiçaria, o "trabalho" é desfeito. Entre uma chupada e outra o Mestre cospe fora o feitiço, depositando em um copo para depois jogar fora supostas substâncias utilizadas no malefício: pedaços de ossos, pólvora, insetos, etc.
Do culto aos Orixás, em Canguaretama há casas que não absorveram quase nada. Há, porém, uma releitura de elementos afro: Orixás como Oxóssi e Iemanjá, por exemplo, manifestam-se como Mestres espirituais nas sessões de Jurema. Iemanjá, uma "mestra sereia" e Oxóssi, um caboclo da mata. Mas em outros terreiros, os Orixás são bastante citados. No "Centro Espírita de Umbanda Caboclo Zé Pelintra e Caboclo Panema", por exemplo, havia trabalhos de Mesa, Toré de Caboclo e trabalhos na linha do Candomblé - cada um em um dia da semana; já no encontro dos juremeiros de Canguaretama, ocorrido no Terreiro Mestre Malunguinho, em 4 de abril de 2010, antes de cantar para Caboclos e Mestres, cantou-se para Exu e para vários Orixás. Existem Mestres, não esqueçamos, que não encontram seriedade nas giras, considerando-as lugares perigosos onde todo tipo de espírito pode "baixar", inclusive entidades viciadas e perversas. Para esses Mestres, o trabalho sério de cura só é realizado nas Mesas de Jurema.
A influência católica é muito forte. As sessões de mesa, por exemplo, quase sempre são iniciadas por preces ou cânticos de teor cristão. Nas casas há imagens de santos e santas católicas; e todos os Mestres espirituais, antes de cantarem suas toadas através das quais se apresentam, dizem: "Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo!", sendo respondidos pela assistência: "Para sempre seja louvado!".
Interessante lembrar que nos séculos XVI e XVII, no nordeste brasileiro, tanto portugueses católicos quanto holandeses protestantes, durante as guerras, assistiam silenciosos às invocações indígenas. Sob orientação de espiritos, índios Tapuy'ya e Potiguara se preparavam para os combates, fortalecendo as campanhas e firmando interesses dos invasores europeus. Porém, em outras ocasiões, cultos como a Jurema foram considerados "feitiçaria", sendo assim perseguidos: desde o século XVI, ocas consagradas às divindades indígenas são queimadas e os espíritos protetores são tachados de demônios; pajés foram perseguidos, presos e diabolizados - o que me faz acreditar que os cristãos de hoje, no critério "intolerância", parecem continuar idênticos aos colonizadores dos séculos XVI e XVII.
Texto bom, bastante esclarecedor.
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